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Crítica da série Abbott Elementary

Fonte: TMDB

Um retrato honesto e hilário da sala de aula americana

Se tem algo que raramente é explorado com profundidade — e humor — na televisão, é o cotidiano das escolas públicas. Mais especificamente, a vida dos professores que tentam, com criatividade e um otimismo teimoso, fazer a diferença diante de um sistema desafiador. A série Abbott Elementary consegue exatamente isso: entregar uma comédia inteligente, leve e socialmente afiada, que mistura crítica e carinho de forma quase cirúrgica.

Criada e protagonizada por Quinta Brunson, a série estreou em 2021 e rapidamente conquistou crítica e público, acumulando prêmios e elogios por onde passa. Mas o que torna Abbott Elementary tão especial? Por que ela se destaca em meio a tantas produções cômicas?

A resposta está nos detalhes: nos personagens absurdamente humanos, no formato mockumentary bem executado, e, sobretudo, na forma como a série ri de um sistema falho — sem nunca perder o respeito por quem tenta consertá-lo todos os dias.


Personagens pequenos, corações gigantes

Um dos grandes méritos da série está em sua galeria de personagens, que parecem saídos de qualquer escola pública do mundo — e, ainda assim, são completamente originais. Não são heróis idealizados, nem caricaturas sem profundidade. São pessoas. Com seus limites, medos, manias e boas intenções.

Janine Teagues, interpretada pela própria Quinta Brunson, é a protagonista e ponto de entrada emocional da história. Otimista quase ao ponto da ingenuidade, ela acredita que tudo pode ser consertado com esforço, boa vontade e cartazes coloridos. Janine representa aquele tipo de professora que muitos de nós tivemos: apaixonada, sonhadora, às vezes um pouco perdida, mas sempre tentando.

Do outro lado do espectro, temos Barbara Howard (vivida pela icônica Sheryl Lee Ralph), uma veterana da educação, religiosa e impassível, que já viu de tudo e não se abala por mais nada. Sua interação com Janine rende algumas das cenas mais cômicas — e tocantes — da série.

Completam o time a sarcástica e enigmática Ava Coleman (a diretora que não entende nada de gestão, mas entende tudo de redes sociais), o adorável e deslocado Gregory Eddie, e a espirituosa Melissa Schemmenti, que parece ter um “jeitinho” para tudo.

Cada um deles traz à tona arquétipos reconhecíveis, mas todos ganham nuances ao longo dos episódios. E esse desenvolvimento — lento, orgânico e sincero — é o que faz o público se apegar tanto a esses personagens.


A escola como metáfora: crítica social com risos no lugar da raiva

Em vez de usar o dedo em riste para denunciar os problemas do sistema educacional, Abbott Elementary escolhe rir das dores com empatia. A série não ignora a realidade: há falta de recursos, desorganização administrativa, salários baixos e uma carga emocional enorme sobre os professores. Mas o tom é sempre gentil — como quem entende que, apesar de tudo, ainda há beleza ali.

Os episódios mostram desde situações triviais — como um apagão ou uma tentativa frustrada de modernizar a escola — até temas mais sérios, como desigualdade racial, abandono estrutural e descaso político. Mas tudo isso vem embalado em um humor leve, que convida o público a pensar sem pressionar.

O formato mockumentary (um falso documentário, popularizado por séries como The Office e Parks and Recreation) dá ainda mais força a essa proposta. O uso de olhares para a câmera, entrevistas improvisadas e momentos de silêncio constrangedor cria um clima de proximidade. É como se estivéssemos ali, entre os corredores de Abbott, observando tudo com afeto e surpresa.


Representatividade com naturalidade — e sem precisar gritar

Fonte: TMDB

Outro ponto forte da série é a representatividade racial, de gênero e de personalidade, tratada com naturalidade e sem moralismo. Grande parte do elenco principal é formado por pessoas negras, e os personagens fogem dos estereótipos tradicionais que ainda são comuns na televisão.

Abbott Elementary mostra que é possível falar de diversidade sem fazer da diversidade o único tema. Ela está ali, presente em cada fala, em cada contexto, mas integrada de forma orgânica. Isso torna a série mais poderosa do que muitas produções que tentam ser “militantes” demais, mas acabam soando forçadas.

Além disso, a série destaca o papel fundamental das mulheres negras na educação pública dos Estados Unidos — um reconhecimento que, por si só, já seria digno de nota. Mas aqui, vem com humor, com respeito e com muito carisma.


O sucesso de público e crítica — e o carinho dos professores

Desde sua estreia, Abbott Elementary tem recebido aclamação quase unânime. Ganhou prêmios no Emmy, no Critics’ Choice, no Globo de Ouro e, talvez o mais importante, o amor do público que ela representa: os professores.

Educadores do mundo todo se veem nas cenas da série. Em entrevistas e redes sociais, muitos relatam que se sentiram, pela primeira vez, vistos com realismo e afeto. Que finalmente alguém mostrou o lado bom — e o lado exaustivo — da profissão sem recorrer ao drama excessivo.

Não é à toa que escolas e sindicatos de professores têm apoiado a produção, convidando seus alunos e colegas a assistirem aos episódios como forma de valorização da carreira.


Humor que cura, toca e permanece

Talvez o maior trunfo de Abbott Elementary seja sua capacidade de unir humor e coração. A série não é apenas engraçada — ela é sensível. Faz rir com inteligência, emociona sem pieguice, critica sem agressividade e elogia sem endeusar.

Essa delicadeza no tom é rara. Em tempos de comédias aceleradas, piadas previsíveis e roteiros descartáveis, Abbott Elementary nos convida a desacelerar, a observar e a reconhecer beleza no banal.

E, de forma sutil, nos lembra de algo essencial: que por trás de cada quadro negro (ou lousa digital), existe um professor tentando fazer o melhor com o que tem — e muitas vezes, com o que não tem.


Lições que ultrapassam os muros da escola

A série não se limita ao universo escolar. Suas reflexões atingem qualquer pessoa que já teve um professor marcante, que já estudou em escola pública, ou que já tentou — em qualquer área da vida — fazer a diferença num sistema que não colabora.

Em Abbott Elementary, aprendemos que persistência pode andar de mãos dadas com humor, que a esperança não precisa ser ingênua para ser real, e que os pequenos gestos — como um lanche dividido, uma sala decorada, uma bronca bem dada — podem ter impactos gigantescos.

No fundo, a série ensina que educar é, antes de tudo, um ato de fé nas pessoas.


Conclusão: uma comédia que faz bem — e faz pensar

Abbott Elementary é mais do que uma série divertida. É uma homenagem bem-humorada aos heróis anônimos da educação, aos alunos esquecidos pelo sistema, e aos momentos simples que, no fim das contas, moldam quem somos.

Ela é, ao mesmo tempo, uma crítica social e uma carta de amor. Um retrato honesto, mas afetuoso. E uma prova de que é possível, sim, fazer entretenimento de qualidade que respeita a inteligência do público e a dignidade dos personagens.

Se você ainda não assistiu, está perdendo uma das séries mais encantadoras e relevantes dos últimos anos. Se já assistiu, sabe bem: Abbott Elementary não é só sobre ensinar crianças. É sobre ensinar todos nós a olhar com mais empatia — e rir no processo.